O “Nome Social” e a busca pela identidade correta

O uso do nome social é uma forma de garantir às pessoas que não se identificam com o nome de registro na certidão o direito de existirem como elas se reconhecem

Foto: Lucas Marques

Ter um nome para chamar de seu é uma das coisas mais naturais do mundo. Porém, o nome escolhido no momento do registro de nascimento pode causar diversos sentimentos naqueles que o carregam. Desconforto, estranhamento ou até repulsa podem fazer parte da vida da pessoa tem um nome que não a representa. Nome também é identidade, seja perante a Justiça e aos órgãos públicos, mas também na roda de amigos, no local de trabalho e na comunidade como um todo.

Para, de certa forma, corrigir isso, existe o “Nome Social”. Esse é o modo como a pessoa se autoidentifica e é reconhecida, identificada, chamada e denominada na sua comunidade e no meio social, uma vez que o seu nome civil, isto é, seu nome de registro, não reflete a sua identidade de gênero. O nome social está muitas vezes ligado a pessoas trans, travestis e não binárias, que nasceram e foram registradas com um nome X, porém, no decorrer da vida e entendimento próprio, não se identificam mais com o que ele traz de bagagem, principalmente na questão do gênero.


Para uma jovem de quase 30 anos e que recentemente tirou a carteira do nome social, a identificação com essa parte de sua vida sempre causou estranhamento. “Conforme fui ficando mais velha, o nome foi me incomodando mais e mais a ponto de simplesmente não me apresentar pra ninguém. Parecia que quando eu o falava em voz alta soava falso, parecia que estava falando de outra pessoa”, relata. A jovem se identifica como uma pessoa não binária e diz que até chegar no novo registro, levou um tempo e muita reflexão. “Eu não queria mudar para algum nome que estivesse atrelado a alguma categoria de gênero binária. Tipo, não queria um ‘nome de menina’, ou ‘nome de menino’. A sensação era que nada disso ia ser suficiente”, pontua.

Na questão de documentação e de como esse indivíduo é visto perante os órgãos governamentais, a opção pelo uso do nome social não deve encontrar barreiras. “Não requer uma formalidade. Claro que, para que ele seja, digamos assim, registrado, existem documentos específicos, por exemplo, a carteira de nome social, mas o nome social deve ser respeitado sem a necessidade de apresentação de qualquer documento, principalmente, na questão de órgãos públicos”, afirma Daniel Chies Baldasso, advogado que trabalha com direito da diversidade e também atua na ONG Construindo Igualdade de Caxias do Sul, mantenedora da Casa de Acolhimento LGBTQIA+ de Caxias.

Exemplo de Carteiro de Nome Social

Sobre as etapas de mudança de sua documentação, a jovem explica que não foi um processo tranquilo. “Conseguir agendar horário pra fazer identidade foi difícil e, cada vez que ia até o lugar, tinha um empecilho novo. Fiquei meses tentando. Tanto que quando consegui foi muito emocionante mesmo. No dia que assinei os documentos pra autorizar a identidade e assinei com o nome social, comecei a chorar na hora. Um tempo depois quando o documento ficou pronto chorei de novo. Atestada por lei, com o nome social vinculado ao RG. Foi surreal a sensação”, conta.

Preconceito

Mesmo sendo um direito de todos os cidadãos, o uso do nome social ainda enfrenta adversidades. O advogado explica que a falta de respeito e o não uso do nome social, a fim de constranger a pessoa e lhe privar de direitos básicos, é preconceito. “Não se admite que tu venha a tratar uma pessoa que se autodeclara com o nome social, diverso daquele registral, e tu venha mesmo assim desconsiderar essa autodeclaração”, salienta. De acordo com o profissional, em casos de discriminação, cabe ação judicial. “A importância desse respeito, ela é a mesma importância dada a qualquer outro direito de relevância para o meio social. O desrespeito, inclusive, pode ocasionar ações criminais e podem ocasionar ações cíveis e indenizatórias”, explica.

Eleições 2022

Desde 2018, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por meio da portaria 1/2018, permitiu a inclusão do nome social no título de eleitor. Para conseguir fazer a troca é simples, basta acessar o Título Net, preencher o requerimento com os documentos necessários e enviar para a zona eleitoral da pessoa. Porém, em 2022, como é ano eleitoral, a solicitação só poderia ter sido feita até 4 de maio. O Cartório da 8ª Zona Eleitoral de Bento Gonçalves não tem um levantamento de quantas pessoas solicitaram o processo de inclusão do nome social, conforme explica o atual chefe Ricardo Abreu. Porém, ele garante que recentemente a procura tem sido baixa.


Na visão da jovem, essa inclusão no Título de Eleitor pode sim incentivar que mais pessoas que estão dentro do espectro trans exerçam seu poder de voto. “O nome é muito importante pra qualquer pessoa dentro do ‘guarda-chuva’ trans. É nossa identidade, é nossa representação para o mundo, é nossa maneira de nos afirmarmos enquanto seres humanos que têm direitos dentro de um coletivo. […] pessoas trans existem, fazem parte da sociedade, têm posicionamentos e pensam sobre seu lugar no mundo como qualquer um”, conclui.

Baldasso destaca que a Justiça Eleitoral tem feito seu papel na validação dos direitos, porém, algumas pessoas ainda desconhecem dessa possibilidade, por isso, o trabalho de propagação de informações corretas deve ser feito de forma contínua. “Nós temos que ter uma Justiça Eleitoral formada por servidores com conhecimento desse direito para que eles possam orientar as pessoas que assim desejarem a fazer essa inserção do nome social”, pontua.